PARA O DEBATE: Sobre o Brexit e a farsa do projeto europeu

Sobre o Brexit e a farsa do projeto europeu 

Por: Paris Yeros

Os efeitos do Brexit emergirão aos poucos nos próximos anos.As negociações entre o Reino Unido (RU) e a União Europeia (UE) serão complexas, não apenas pelo fato de se tratar do desmonte de um pacote gigante de acordos, mas também pelos duros antagonismos que aparecerão no caminho, tanto entre como dentro das duas partes. Pois as facas, mais uma vez, foram sacadas e não há projeto político europeu no horizonte capaz de obter uma conciliação efetiva pela via das urnas. 

O Brexit certamente marcará mais um passo rumo à involução final do projeto europeu. E não houve outro caminho possível para tal projeto. Devemos lembrar que nasceu com a finalidade de dominar o mundo, e nunca mudou de cara. Consolidou-se como projeto no século XIX, a partir da revolução industrial, da formação de monopólios e, não menos, do racismo científico. O seu auge foi naquele mesmo século, quando lançou uma nova corrida colonial relâmpago, genocida como sempre, até sucumbir à sua própria lógica monopolista e racista.

Das cinzas das guerras e catástrofes da primeira metade do século XX, o projeto europeu buscou o seu relançamento, porém lhe faltavam as condições básicas. Como disse certa vez um velhinho sábio, “a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.  De fato, nunca mais teve o projeto europeu a capacidade de andar com os seus próprios pés. Andou apenas nas costas do Plano Marshall e da OTAN, que fizeram renascer o capitalismo monopolista europeu, ao passo que as “grandes potências” do continente perdiam as suas valiosas colônias. 

A última tentativa de se relançar o projeto tomou lugar nos anos 1980, com base nos interesses precisamente dos grandes monopólios ora restaurados, porém abalados pela crise dos anos 1970. Sob a liderança do ressurgente capital financeiro, por uma lado, com sede em Wall Street e em seu parceiro júnior, em Londres, e por outro lado, do marco alemão apoiado em suas indústrias de ponta, seguiu em frente o projeto na construção de um mundo neoliberal utópico, sempre, claro, sob o guarda-chuva militar dos Estados Unidos. A Lei Única Europeia (1986) que criou o Mercado Comum e o Tratado de Maastricht (1992), que desenhou a União Monetária, deram sobrevida à farsa. 

Embora o RU tenha ficado fora da união monetária e outros acordos importantes, como os de Schengen, se integrou substancialmente na economia da UE, e da Alemanha em particular, enquanto a Cidade de Londres construiu a ponte entre o dólar e o euro. Nesta nova relação, o RU assumiu uma posição difícil e tensa entre os EUA e a Alemanha. Os governos britânicos apoiaram vigorosamente a expansão da OTAN e suas guerras ao redor da Europa, enquanto assistiram à reemergência alemã no centro da Europa e, por consequência, à rendição da França, outrora o principal contrapeso dentro da Zona do Euro. Quando a Alemanha mostrou os dentes aos seus parceiros sul-europeus, ora em crise e depressão, pós-2008, restava pouco daquele otimismo europeu e neoliberal. 

O Brexit ganhou apoio suficiente da classe trabalhadora britânica, inglesa em particular, e especialmente aquela removida dos eixos mais privilegiados da economia mundial, especialmente em Londres. Ganhou também o apoio de uma parcela relativamente pequena, porém politicamente significativa, do grande capital britânico, incluindo diversos setores que enxergaram o seu futuro nas relações com os “emergentes” – não com a Alemanha – especialmente a Índia e a China, como também a Austrália e os países do Commonwealth em geral. Por fim, ganhou apoiou dos lobbies das pequenas e médias empresas (SMEs), aquelas que também vêm se sentindo prejudicadas pelo avanço do capitalismo monopolista europeu contra o seu mercado nacional britânico.

Eis os resultados! A classe trabalhadora se rebelou contra a decadência em que entrou com o surto do desemprego e o desmantelamento do Estado de Bem-Estar, cada vez mais agressivamente pós-2008. Por sua vez, o grande capital britânico “rebelde” fez os seus próprios cálculos econômicos concretos e/ou políticos de longo prazo e considerou fatos relevantes como os seguintes:

  • o RU mantém um déficit comercial em relação UE, no valor de 68 biliões em 2014,  sendo um terço desse em relação a Alemanha, o qual dificilmente será revertido;
  • as exportações britânicas de bens e serviços para a UE entraram em declínio acelerado desde 2008, caindo de 50% das suas exportações totais a 45%, e a tendência é cair mais;
  • as exportações da UE para o RU correspondem a 17% das suas exportações totais em 2014 (igual à parcela da UE destinada aos EUA), o qual dificilmente será redirecionado a outros mercados, já saturados;
  • desde 2000, o ritmo de crescimento das economias dos países emergentes e dos em desenvolvimento tem sido sistematicamente o dobro do das economias avançadas, tanto antes como após a crise de 2008;
  • os acordos da UE não permitem o avanço de acordos comerciais com países fora da EU, especialmente com a Índia, a China e a Austrália.

 

Tais vivências, tendências e cálculos foram suficientes para a ideia do Brexit conquistar a estratégia do partido Conservador, os Torries, e uma parte importante do eleitorado do partido Trabalhista (Labour). Somando-se à profunda clivagem Norte-Sul da UE, à decadência geral das condições de vida da classe trabalhadora europeia e aos novos chauvinismos que voltam a conquistar mentes e corações, o Brexit sinaliza a involução final do projeto-farsa. Resta acrescentar que, junto à UE, afundará a economia mundial e os pactos-ilusões que sustentaram a utopia neoliberal globalizante.

Paris Yeros é professor nos Cursos de Ciências Econômicas e de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC

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