O futuro do Chavismo na Venezuela: entrevista com Gilberto Maringoni
Venezuela - Diário Liberdade - Gilberto Maringoni é hoje no Brasil um dos nomes mais expressivos quando o assunto é Venezuela. Em entrevista ao Diário Liberdade, o jornalista apresenta sua opinião sobre o processo político que a Venezuela vive desde de 1998.
Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC (Universidade do ABC/SP) e autor de dois livros sobre o país: ‘A Venezuela que se inventa’ (Editora Fundação Perseu Abramo, 2004) e de ‘A revolução venezuelana’ (Editora Unesp, 2009). Atualmente também é colunista do site Carta Maior.
Entrevista concedida a Sturt Silva, repórter do Diário Liberdade no Brasil.
Diário Liberdade: Como você está vendo a situação na Venezuela, sem Hugo Chávez ativamente e com Nicolás Maduro no comando?
Maringoni – O processo político venezuelano completou 14 anos em janeiro. Não foi um período tranqüilo, mas as conquistas foram profundas. Chávez tocou em dilemas estruturais da sociedade venezuelana e conseguiu recompor institucionalmente um país em crise. A pretensa harmonia democrática que existiu entre 1961 e 1999 – época do regime de Punto Fijo – se mostrou artificial após a queda dos preços do petróleo, em 1983, que colocou a nu o arranjo institucional baseado na alternância de poder entre dois partidos de direita. Ao dar voz e espaço às maiorias anteriormente excluídas, Chávez liderou um processo de construção nacional consistente. Mais do que os programas sociais, a legitimidade conquistada a partir da luta social consolidou uma dinâmica democratizante irreversível. É possível dizer que apesar da importância de Chávez na atualidade, o processo agora é coletivo e não depende exclusivamente dele. Nicolas Maduro tem plenas condições de conduzir o país, caso o presidente não possa voltar.
Diário Liberdade: O ato simbólico em que a população e Maduro tomaram posse em nome de Chávez foi uma mensagem de que é Maduro o substituto de Chávez e de que o chavismo terá vida longa mesmo sem Chávez?
Maringoni – Foi uma mensagem que o processo de transição de poder entre Chávez e Maduro – se de fato acontecer – tem enorme legitimidade popular, por mais que a direita venezuelana e mundial queira alegar que os ritos democráticos não foram cumpridos.
Diário Liberdade: Um dos problemas do chavismo é a presença de um líder político único. Mesmo depois de confirmado os graves problemas de saúde de Chávez, que colocava a legitimidade e a institucionalidade chavista em risco, as iniciativas na busca de novos líderes aparentemente não existem. Quais as causas disso?
Maringoni – Primeiro a Venezuela não tem um líder político único. As eleições de governadores, em dezembro, quando o PSUV venceu em 20 dos 23 estados mostra a multiplicidade de lideranças na cena venezuelana. Evidentemente, por seu papel histórico nos últimos 21 anos, Chávez é aquele com maior visibilidade e legitimidade. Alia-se a isso suas características excepcionais como dirigente e intelectual. Nenhum processo de transformação na História dependeu de apenas um indivíduo.
Diário Liberdade : Colocar o vice como indicado pelo presidente, e não como eleito como são em outros países, não facilita o agravamento do problema colocado na pergunta anterior?
Maringoni – O vice poderia ser eleito e talvez isso facilitasse o processo de transição. Mas não tenha dúvidas: se não fosse por esse fator, a imprensa de direita seguramente encontraria outro para desqualificar a construção democrática na Venezuela.
Diário Liberdade: O Processo chavista que a Venezuela vive afinal é o que? Como você define conceitualmente?
Maringoni – É um processo de democratização do poder, de fortalecimento do Estado e a favor de um desenvolvimento com distribuição de renda pioneiro após a queda dos regimes soviéticos. Chávez surge quando o neoliberalismo ainda tinha muita legitimidade. Sua eleição é um acontecimento absolutamente excepcional em termos globais. E ele não tem retrocedido e existe a intenção clara de se caminhar para o socialismo, em uma situação internacional adversa.
Diário Liberdade: Quais as classes sociais que dão apoio ao chavismo? E a oposição? Dá para o senhor explicar quem são essas classes e como elas se têm comportado no processo?
Maringoni – A Venezuela é um país com uma classe operária diminuta e um campesinato menor ainda. Mais de 85% da população vive nas zonas urbanas. Mesmo a economia petroleira emprega muito pouca gente em relação à população economicamente ativa, algo como 1% desta. O subemprego deu o tom ao longo do século XX, com uma concentração grande no setor de serviços. Chávez tem o apoio majoritário de uma vasta e difusa população pobre, em processo contínuo de organização. Setores das classes médias também apóiam o processo. O corte que se faz lá, pode-se dizer sem erro, é nitidamente classista. A maioria dos pobres apoia Chávez.
Diário Liberdade: A oposição hoje aceita a “reconstitucionalização chavista” pós crise neoliberal. Prova disso é sua atuação, pelo menos nas urnas, dentro do jogo “democrático burguês”. Quais as causas que fez com ela mudasse de tática?
Maringoni – A oposição teve uma tática entre a posse de Chávez e 2005. Até ali, ela recusava-se a participar do jogo democrático, por achar que o presidente não passava de um caudilho demagogo. Por isso tentou derrubá-lo através do golpe e do locaute, em 2002. Três anos depois, decidiu não participar das eleições parlamentares, alegando a ilegitimidade do processo. O resultado foi desastroso e eles ficaram fora da Assembléia Nacional por quatro anos. Depois disso, uma parte resolveu disputar eleições dentro da institucionalidade, o que fortaleceu a democracia local. Há facções minoritárias que denunciam viver numa ditadura, com pouquíssimo respaldo popular. Esses setores minoritários questionam hoje a posse de Maduro, enquanto uma facção majoritária não.
Diário Liberdade: Um aprofundamento do processo revolucionário bolivariano faria com que a oposição de direita voltasse atuar fora do jogo democrático venezuelano?
Maringoni – Embora a direita queira recuperar o poder de qualquer jeito, a maneira como ela tenta alcançar esse objetivo pode variar de acordo com cada cenário. O aprofundamento – e maior legitimidade – do processo, ao contrário, pode isolar mais as forças conservadoras. Mas é bom ressaltar: elas tiveram 44% de votos nas eleições presidenciais de outubro último. Investir novamente na aventura golpista significa ir para a marginalidade política. No entanto, ninguém pode prever os movimentos táticos de quem já tentou tomar o poder pela força...
Diário Liberdade: E as teses que colocam que o perigo para a revolução bolivariana não é a direita tradicional, mais sim os setores da direita chavista e os erros cometidos pelo conjunto do chavismo?
Maringoni – É preciso mediar o que são os erros no interior da coalizão chavista. Eles existem e são muitos. Mas são insuficiências num processo cuja direção principal representa um grande avanço ou acerto da sociedade venezuelana. Há questões administrativas a serem resolvidas, como problemas na área da segurança, serviços públicos etc, que podem ser facilmente resolvidos. Mas as opções antipopulares e elitistas da oposição é que representam o grande risco para o país.
Diário Liberdade: A política venezuelana historicamente sempre foi feita de cima pra baixo. A chamada Revolução Bolivariana não teve como fugir desse elemento concreto da sociedade venezuelana. A construção de um Estado Comunal, ou seja, de comunas onde estas teriam autonomia política e ordenamento jurídico, é possível de acordo com as condições objetivas e subjetivas atuais? Ou esse tal de “poder popular” o máximo que poderia fazer é democratizar a institucionalidade burguesa?
Maringoni – Não entendo bem o que se quer dizer com “de cima para baixo”. Todo processo político, para ser efetivo, precisa de legitimidade popular. Embora as decisões de governo sejam tomadas pelos membros do Executivo e do Legislativo, se não atendem a demandas a partir de baixo, não se sustentam. O problema na Venezuela é que o movimento popular foi duramente reprimido entre 1961 e 1998, antes de Chávez chegar ao poder. A reconstrução tem sido difícil, mas constante. É preciso levar outra coisa em conta. A Venezuela busca construir uma via para o socialismo após duas décadas de destruição neoliberal e da queda dos grandes referenciais da luta pelo socialismo, representados – com todos os problemas que tiveram – pelos países do bloco soviético. Não é pouca coisa o que se conquistou até hoje.
Diário Liberdade: De “cima pra baixo”, no meu entender, significa um processo onde as classes populares estariam marginalizadas das tomadas de decisões do poder político, ainda assim, seja por coerção ou consenso, apóiem tais políticas. Com o chavismo se deu entender que as classes subalternas tornariam protagonistas do processo, no entanto, para citar um exemplo: o PSUV funciona mais a partir de “decretos” dos altos dirigentes do estado e de Cháves do que a partir de assembleias populares.
Maringoni – As classes populares não estão marginalizadas do poder político na Venezuela. Aquele é o país em que mais se realizam eleições e plebiscitos. Não há um exemplo no mundo de partido ou governo que não tenha direção e em que as decisões do dia a dia sejam tomadas através de grandes assembleias ou congressos. Comparar a Venezuela com qualquer outro país nesse quesito é impensável. Onde está a participação popular nas chamadas democracias ocidentais, como França, Inglaterra, Itália, Alemanha e EUA? Na verdade, o que ocorre lá é que a brutalidade repressiva durante quase 40 anos foi tão forte que desarticulou completamente o movimento popular entre 1961-1998.
Diário Liberdade: No Brasil temos um projeto “desenvolvimentista-popular” em que as classes dominantes (basicamente o grande capital financeiro/industrial e o setor agro-exportador) são as protagonistas. Romper com elas ou parar de ser refém das políticas ditadas (questão agrária, política macroeconômica) pelos setores que as compõem seria necessário para desenvolver uma alternativa social e econômica para o país. Você defende que os governos latino-americanos do campo progressista são diferentes, ou seja, são e foram construídos de acordo com suas peculiaridades. No entanto, todos foram construções causadas pela crise do neoliberalismo dos anos 90. Na Venezuela ao contrário do Brasil se fala (ou até se pratica) revolução e socialismo. No Brasil não. Compare o quadro brasileiro e o venezuelano de acordo com afirmação acima.
Maringoni – É preciso ver com mais cautela essas questões. Não temos no Brasil um projeto desenvolvimentista e popular. Temos um ativismo estatal que pode se abrir para um desenvolvimentismo dessa natureza. Desenvolvimento, num sentido popular, já nos ensinava Celso Furtado, pressupõe planejamento, investimento e intervenção do Estado e transformação social. O grande nó a ser resolvido – como sempre foi ao longo do século XX em nossos países – é a questão do Estado. A que ele se destina, a quem serve e onde deve investir. A construção de alternativas ao neoliberalismo na América Latina se dá num quadro internacional bastante complicado e de combate frontal às antigas experiências socialistas, por parte da direita. Ao contrário do que muitos falam, tais experiências tiveram pontos infinitamente mais positivos do que negativos para os povos. Por isso, o conservadorismo até hoje busca, de todas as formas, desqualificá-las. A última revolução socialista exitosa que tivemos completa quarenta anos neste mês de fevereiro. Foi a revolução vietnamita. Assim, retomar o fio dessa meada significa trilhar caminhos novos e difíceis. Nem todos os governos chamados de progressistas apontam para o socialismo em nosso continente. Mas em todos, há profundas disputas na sociedade e mesmo no interior das coalizões governistas. Os casos brasileiro e venezuelano têm em comum as circunstâncias internacionais em que ocorrem. Mas as dinâmicas internas de cada país são muito particulares, assim como as alianças que se formaram para administrar cada país.
Diário Liberdade: O que significa para a América Latina e para os EUA, o fim de Chávez como presidente e uma possível derrota do chavismo na Venezuela?
Maringoni – Sinceramente não acho que esteja em pauta uma derrota do chavismo, mesmo que Chávez não possa voltar á presidência.
Diário Liberdade: Para fechar uma questão sobre a mídia. Na América Latina, e com a Venezuela não é diferente, os acessos aos meios de comunicação são quase nulos, logo a liberdade de expressão na pratica não existe, tornando a democracia fictícia. Temos o que o jornalista brasileiro Altamiro Borges denominou de ditadura midiática, onde grupos empresariais controlam a circulação da informação e os meios disponíveis para as pessoas se comunicarem. A alternativa da Venezuela parece que por um lado foi investir em mídia estatal como a VTV, e por outro lado incentivar uma comunicação popular e comunitária, mas que não vive sem apoio de recursos do governo, logo acaba tendo sua autonomia comprometida. Além é claro de tolerar e manter “concessões” a grupos empresariais de mídia privada. No entanto, o ideal seria a construção de uma mídia comunitária e popular, onde as demandas populares de forma autônoma teriam que protagonizar o processo. Como você vê isso?
Maringoni - Temos uma batalha titânica a ser enfrentada para a construção democrática: a democratização das comunicações. O ponto de partida é acabar com o monopólio da mídia. Quem é esse monopólio? Em sua maior parte é formado por impérios midiáticos globais, com presença em diversos países. Podemos e devemos construir dezenas e centenas de meios alternativos – emissoras, jornais, revistas, sites, blogs etc. – para fazer frente a um inimigo poderoso. Mas essa é uma guerra assimétrica, embora importante. Os monopólios só podem ser enfrentados por um poder que torne a disputa menos desigual. Esse poder é o Estado, a quem cabe – de forma democrática – regular o funcionamento dos meios de comunicação. Não há mal nenhum em os veículos alternativos terem apoio estatal, desde que a autonomia esteja garantida.
Foto 1: Gilberto Maringoni.
Foto 2: Jornalista palestrando na Unifor (Universidade de Fortaleza/Ceará) em 2009.
Foto 3: Maringoni durante evento de comunicadores populares no Rio de Janeiro em 2012.
Foto 4: Maringoni cartunista.