Repercussões da Conferência - Folha de São Paulo
O futuro em São Bernardo
Há anos o debate público sobre política externa é vítima de intensa polarização entre PT e PSDB.
Os defensores de Lula enxergam nele o artífice da diplomacia mais arrojada. Digno e altivo, ele teria inaugurado uma nova era. Fernando Henrique Cardoso, ao contrário, representaria a capitulação ao poder americano.
A cena favorita é a de um chanceler tucano tirando os sapatos em aeroportos americanos.
Do outro lado do ringue, estão os tucanos, para quem FHC teria normalizado as relações do Brasil com o mundo, restaurando-lhe as credenciais depois de anos de isolamento e atraso.
Para esse grupo, Lula sofreria arroubos irresponsáveis de estadista: a cena em reprise é o abraço dado no presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad.
A briga entre os dois bandos é atrativa em sua simplicidade: há mocinhos e há bandidos, numa fantasia que virou discurso hegemônico porque é sustentada por ambos os lados. Equivocada, a distinção empobrece a conversa sobre os rumos da diplomacia.
Felizmente, sopram agora ventos de mudança.
A Universidade Federal do ABC, campus São Bernardo, acaba de reunir movimentos sociais, centrais sindicais, ONGs, partidos de esquerda e intelectuais para três dias de debate sobre política externa.
Houve 600 participantes e 12 mil seguidores on-line.
Concebido na esteira das celebrações de uma década petista no poder, por seu palanque desfilaram ministros do governo, corporações amigas e acadêmicos alinhados ou simpáticos ao PT. A chave de ouro ficou por conta do próprio Lula, que fez a palestra de encerramento.
Só que o encontro não seguiu um script governamental. Em textos preparatórios para a conferência, em ricos embates durante os intervalos e na crítica de jovens ali presentes ao que ouviam das autoridades de Brasília, sentiu-se o cheiro do novo.
A lista de perguntas mais recorrentes surpreende pela novidade: De que forma a política externa pode ser posta a serviço da redução das desigualdades?
Como democratizar a formulação das posições oficiais do Brasil?
Como aumentar a transparência da diplomacia sem comprometer as negociações internacionais?
Quais são as implicações práticas de tratar a política externa como política pública?
Ao que tudo indica, a disputa por respostas ocorrerá à esquerda. Afinal, com exceção das reflexões recentes de FHC a respeito do futuro do equilíbrio de poder global, a oposição não pensa nem debate as relações internacionais do Brasil.
Em São Bernardo, vozes as mais díspares encontraram abrigo comum no lulismo.
Elas continuarão celebrando seu líder e descartando o que veio antes. Mas elas também trazem uma mensagem nova.
Como revelou o tráfego na internet durante a palestra do ex-presidente, os chavões e as frases de efeito arrancam risos e aplausos, mas apontam para um mundo e um Brasil que são passado.
Em campo progressista, a diplomacia de Lula é memória a ser celebrada, não lanterna do futuro.
Matias Spektor ensina relações internacionais na FGV. É autor de "Kissinger e o Brasil". Trabalhou para as Nações Unidas antes de completar seu doutorado na Universidade de Oxford, no Reino Unido. Foi pesquisador visitante no Council on Foreign Relations, em Washington, e em King's College, Londres. Escreve às quartas, a cada duas semanas, em "Mundo".