PARA O DEBATE: OMC: aonde nos levará essa vitória?
OMC: aonde nos levará essa vitória?
Igor Fuser
Para o bem e (pode-se temer) para o mal, a eleição de Roberto Azevêdo para o cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi uma vitória da atual política externa brasileira. Os tucanos, a mídia de direita e o Partido dos Diplomatas Aposentados torciam abertamente pelo candidato mexicano, um notório serviçal dos Estados Unidos. Para ter uma ideia da decepção desses setores antibrasileiros, basta lembrar que no próprio dia da escolha de Azevêdo, quando as avaliações disponíveis já sinalizavam o resultado, a Folha de S. Paulo comemorava adesões de última hora ao candidato rival com a seguinte manchete: “Brasil sofre revés na disputa por órgão global de comércio”.
No contexto da corrida para as eleições de 2014 no Brasil, a proeza do Itamaraty na OMC desmonta uma das peças do arsenal retórico da oposição, sempre empenhada em apresentar a diplomacia dos governos Lula e Dilma como uma política desastrosa que provocou o isolamento do País no cenário mundial. Ao contrário disso, a vitória de Azevêdo atesta o prestígio do Brasil junto aos países pobres e em desenvolvimento, que votaram maciçamente no nosso compatriota. Tal como na eleição, em 2012, de José Graziano da Silva para o comando da FAO (a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura ), o governo brasileiro colhe os frutos da ênfase concedida às relações Sul-Sul. O resultado é também fruto de um esforço de construção de alianças que começou na reunião da OMC em Cancún (2003), quando o Brasil liderou a formação do “G-20 comercial”, agrupando os principais países em desenvolvimento com interesses na agricultura. É natural, pois, que a eleição de Azevêdo seja unanimemente apontada como um sinal da força política dos Brics e das nações emergentes em geral.
Apesar de tudo isso, a (boa) notícia traz consigo um conjunto de ressalvas e preocupações que precisam ser assinaladas por quem encara a questão do comércio internacional na perspectiva da maioria da humanidade. A OMC foi criada, em 1995, com o objetivo de promover o chamado “livre comércio”, um dos pilares da globalização neoliberal. Sua atuação têm como foco a redução de tarifas e a remoção de subsídios como um meio de aplainar o caminho para o pleno funcionamento das leis do mercado capitalista. Em um ponto de vista oposto, os movimentos sociais e a verdadeira esquerda lutam contra a liberalização do comércio. Fazem isso com base no entendimento de que, num mundo desigual, a eliminação indiscriminada das políticas públicas de defesa dos mercados e dos produtores nacionais só favorece os atores mais poderosos do Norte desenvolvido – o capital financeiro, os oligopólios industriais e o agronegócio.
A primeira rodada das negociações globais de liberalização comercial, entre 1986 e 1994 , teve um resultado claramente desfavorável para os países da Ásia, África e América Latina. Eles abriram seus mercados aos produtos manufaturados do Norte sem que esses, em contrapartida, renunciassem às políticas protecionistas que bloqueiam as exportações do Sul, principalmente de produtos agrícolas. De quebra, as potências imperialistas conseguiram impor ao resto do planeta regras de proteção à propriedade intelectual que transferem anualmente bilhões de dólares como pagamento de royalties e patentes, em benefício das empresas transnacionais, além de agravarem as condições de saúde nos países periféricos por conta do alto preço dos medicamentos. Essa foi a Rodada Uruguai do GATT, na qual também se decidiu a criação da OMC.
A intenção de corrigir os resultados injustos da Rodada Uruguai levou os países em desenvolvimento a apoiarem a atual rodada de negociações comerciais, inaugurada em Doha, em 2001. Eles reivindicam, sobretudo, o fim das barreiras tarifárias e não-tarifárias e da montanha de subsídios que tornam os mercados do Norte impenetráveis aos produtos agrícolas do Sul. No entanto, os países ricos exigem, como condição para qualquer concessão em tópicos do interesse das nações em desenvolvimento, doses ainda maiores de abertura dos seus mercados em áreas onde as economias do Norte são mais competitivas, em especial a dos manufaturados. A isso se somam as pressões por normas mais severas de proteção à propriedade intelectual e um pacote de medidas que, na prática, impede a ação do Estado em favor do desenvolvimento industrial. Políticas adotadas no Brasil a partir do governo Lula, como o financiamento público a empresas instaladas no país e as regras de “conteúdo nacional” nas compras do governo e das estatais, ficariam proibidas no mundo todo, cabendo à OMC zelar pelo cumprimento dessas regras. Tudo isso, em nome da proteção aos investimentos, o novo mantra do discurso neoliberal. A resistência das nações do Sul a essas propostas regressivas levou a Rodada Doha à situação agonizante em que se encontra desde a reunião de Hong Kong, em 2005. As divergências – é importante assinalar – ultrapassam o plano industrial, envolvendo também a reivindicação de países periféricos e emergentes de inserir “salvaguardas” nos eventuais acordos a fim de proteger sua própria produção de alimentos.
Azevêdo foi eleito com a difícil missão de desbloquear a Rodada Doha, tarefa a que a diplomacia brasileira tem se dedicado intensamente nos últimos sete anos, em vão. A questão é: a que preço? Nesse ponto, a política externa do Itamaraty põe à mostra suas ambiguidades e contradições. Ao mesmo tempo que o Brasil adota uma postura progressista de defesa do multilateralismo e da correção das assimetrias de poder e de riqueza, sua diplomacia comercial se mantém sob o domínio quase exclusivo do agronegócio. Em uma atitude de evidente favoritismo, confundem-se os interesses dos exportadores agropecuários com os interesses nacionais, sempre sob a desculpa de que esse setor responde pela maior parcela dos ganhos na balança comercial. Essa distorção, que garante aos grandes empresários rurais uma influência na diplomacia brasileira desproporcional ao seu peso efetivo na sociedade, se manteve na passagem do neoliberalismo de FHC para o atual modelo neodesenvolvimentista, e não há sinais de mudança em futuro previsível.
Já na reunião da OMC em Hong Kong, em 2005, última tentativa de resolver o impasse que paralisa as negociações comerciais, o Brasil se afastou dos seus parceiros no G-20 para propor uma barganha que consistia em abrir mão de pontos fundamentais de política industrial e das salvaguardas para os alimentos em troca de maior acesso das exportações do agronegócio brasileiro aos mercados do Primeiro Mundo. Graças à oposição de outros países em desenvolvimento, como China, Índia e Argentina, a indecorosa proposta do Itamaraty não foi adiante. O que na mídia e no discurso oficial pareceu uma “derrota” – a paralisação das negociações – representou na realidade uma vitória para os países emergentes e periféricos, e também para os movimentos sociais que, no Brasil e no mundo inteiro, defendem a soberania alimentar e as políticas autônomas de desenvolvimento, longe da interferência da OMC. O risco, agora, é que a situação se inverta e, paradoxalmente, a presença de um brasileiro na direção da OMC venha adicionar o elemento que faltava à pressão sobre os governos do Sul para a adoção das propostas neoliberais da Rodada Doha. O próprio governo de Dilma poderia se inclinar nesse sentido, na medida em que o sucesso ou fracasso de Azevêdo no esforço de “destravar” a agenda comercial da OMC seja associado à avaliação da política externa brasileira daqui por diante. Num cenário de aliança do governo brasileiro com o agronegócio que inclui a senadora Kátia Abreu, do PSD, como integrante da “base aliada” no Congresso, pode-se esperar qualquer coisa.
A situação é complexa, inclusive porque os EUA e seus aliados têm respondido ao bloqueio das negociações da OMC com a estratégia de firmar tratados de comércio bilaterais ou plurilaterais, como a Parceria Trans-Pacífica e, aqui na nossa vizinhança, o famigerado Acordo do Pacífico, o anti-Mercosul. Evidentemente, só têm acesso a esses acordos os países que aceitam aprofundar ainda mais a liberalização dos seus mercados. O passo seguinte será “a pressão para incorporar os termos desses acordos na OMC, esvaziando de certa forma a instituição com sede em Genebra como espaço importante de negociação multilateral”, conforme explicou, em entrevista, o diretor técnico do Dieese, Adhemar Mineiro[1]. O Império não brinca em serviço.
Mesmo nessas condições difíceis, ainda existe espaço para o Brasil aproveitar seu imenso prestígio internacional e a crise das economias capitalistas centrais para construir, em conjunto com os demais países em desenvolvimento e com atores não-governamentais comprometidos com a luta por um mundo mais justo, uma agenda pós-neoliberal para o comércio. É possível retomar a integração regional com um enfoque de desenvolvimento compartilhado em lugar do livre-cambismo. Mas nada disso parece fazer parte dos planos de Brasília e, como tem sido lembrado, Azevêdo foi escolhido para trabalhar pelos objetivos da OMC, e de mais ninguém.
Igor Fuser é professor do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.
[1] Citado por Diana Aguiar na página virtual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), em 16 de janeiro de 2013.