PARA O DEBATE: Ciberpolítica e relações internacionais

Ciberpolítica e relações internacionais

Por Maria Caramez Carlotto

A emergência das novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs) produziram um impacto profundo no plano das relações internacionais. De modo geral, quando se fala de tecnologias no cenário atual, a ênfase quase sempre recai sobre o plano econômico e os impactos desses novos dispositivos sobre a produção e a distribuição de bens e serviços. No entanto, existe outro âmbito em que o uso da TICs torna-se cada vez mais importante: o plano político, que inclui tanto a relação entre Estados Nacionais quanto a relação dos cidadãos entre si e desses com seus respectivos Estados.

Nesse sentido, Philip Howard, no seu livro The Digital Origins of Dictatorship and Democracy: Information Technology and Political Islam, analisa o uso das TICs nos países islâmicos mostrando como essas novas tecnologias tiveram um papel decisivo no surgimento de movimentos de democratização em diferentes países, ao mesmo tempo em que contribuíram para aumentar o processo de vigilância e repressão em outros. Procurando romper com uma visão ontológico-determinista da tecnologia, segundo a qual as TICs seriam intrinsecamente boas ou ruins, o autor procura enfatizar, através de muitos exemplos, que as novas TICs se abrem para usos diversos, tais como a organização e o registro descentralizado de protestos contra o governo, a difusão de informações falsas e boatos sistemáticos, a censura virtual e a vigilância e localização de militantes de oposição. Mas mesmo reconhecendo que as TICs permanecem abertas a usos distintos, o autor insiste que elas, assim como outras formas de tecnologia, não podem ser consideradas “neutras”. Na verdade, Howard insiste que as tecnologias encerram valores e pressupostos que se relacionam diretamente aos objetivos para os quais foram criadas , favorecendo determinados usos e inibindo outros.

No caso específico das novas TICs, Philip Howard destaca que os custos decrescentes de acesso a essas tecnologias e a sua rápida disseminação, em particular nos países islâmicos, favorecem um uso individual e descentralizado que, segundo o autor, atinge o âmago da cultura política predominante em alguns desses países, centrada no controle verticalizado de hábitos e visões de mundo. Assim, embora reconheça que alguns Estados encontraram nas TICs e na internet novos canais de controle social dos seus cidadãos, incluindo formas ativas de vigilância, o fato é que Howard acaba assumindo uma perspectiva essencialmente otimista em relação às TICs e à internet ao enfatizar o seu papel na organização de movimentos democráticos nos países islâmicos.

Considerando especificamente o caso da internet, esse otimismo se justifica, em parte, quando olhamos para a sua história. A internet foi criada, como se sabe, nos Estados Unidos, como parte de um projeto de pesquisa militar durante os anos 1950. Na época, a famosa Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (ARPA) do Departamento de Defesa norte-americano procurava desenvolver um sistema de comunicação que, sem qualquer forma centralizada de controle, se tornasse relativamente imune a ataques nucleares com alvo direcionado. O caráter descentralizado da rede foi potencializado, mais tarde, pelo surgimento de uma tecnologia de empacotamento de dados que permitia o compartilhamento de qualquer conteúdo e formato entre dois ou mais computadores conectados em rede, tornando os centros de difusão ainda mais supérfluos.

Segundo a reconstrução histórica proposta por Manuel Castells, a primeira rede de computadores começou a funcionar em 1969 com o nome de ARPANET, conectando entre si centros de pesquisa militares e grandes universidades norte-americanas. A ARPANET permitiu inserir, em uma pesquisa inicialmente militar, interesses e objetivos de natureza acadêmico-científica. Mais do que isso, dado que o ambiente acadêmico de pesquisa em computação e ciência da informação nos anos 1960 e 1970 vivia sob uma forte influência da contracultura libertária, o desenvolvimento da internet também foi impactado por esse conjunto de valores que, como bem observa Sérgio Amadeu da Silveira no seu texto Ciberativismo, cultura hacker e o individualismo colaborativo, favorece os ideais de emancipação, compartilhamento de informação, meritocracia e liberdade individual que está na origem da cultura hacker. Assim, enquanto um sistema técnico que, na sua origem, buscava prescindir de centros de controle e ao qual se somou uma comunidade de desenvolvedores que compartilhava uma cultura libertária, era esperado que a internet potencializasse usos sociais e políticos voltados à autonomia, ao ativismo individual e coletivo e à contestação social.

Mas a história da internet não se resume a essa origem militar, acadêmica e cultural. No começo dos anos 1990, o governo dos Estados Unidos transferiu a gestão da internet para organizações comerciais, o que contribuiu para acelerar a sua expansão mas, ao mesmo tempo, abriu a rede para interesses do setor empresarial. Essa abertura da internet a interesses comerciais teve impactos na arquitetura das redes e na sua dinâmica de funcionamento, em particular em países que não aprovaram legislações e marcos regulatórios que procuram preservar o formato e a arquitetura original das redes.

Além disso, a abertura da internet para exploração comercial foi mais ou menos concomitante à decisão do governo Clinton de abrir o sinal do Global Positional System (GPS), outra tecnologia de origem militar, para uso comercial e privado. O GPS, em síntese, mobiliza a radiofusão de satélites orbitais para localizar dispositivos emissores de sinal em qualquer local do planeta. Assim, se a rede mundial de computadores permite a conexão de pessoas e dispositivos em qualquer lugar do mundo, promovendo uma desterritorialização por meio de relações virtuais, a geolocalização via GPS permite identificar, com precisão, a posição de qualquer pessoa e dispositivos, promovendo uma reterritorialização dos indivíduos.

Foi justamente a união entre essas duas tecnologias que potencializou formas mais intensas de controle e vigilância na rede, em especial via rastreamento e cruzamento de dados pessoais. Assim, as formas de vigilância digital, hoje, voltam-se cada vez mais para a identificação de perfis individuais pelo rastreamento de informações na rede, padrões de movimentação geográfica e padrões de associação, engajamento e consumo. Essa vigilância pode se dar tanto por meio de empresas privadas, como a “Project Vigilant”, quanto através de agências governamentais, das quais a mais famosa é a norte-americana NSA (National Security Agency).

A empresa norte-americana “Project Vigilant”, cujo lema é justamente “atribuir ações a atores”, ganhou notoriedade internacional ao contribuir para a identificação do soldado norte-americano Bradley Manning como o responsável pelo vazamento de material sigiloso sobre a atuação do exército norte-americano na guerra do Iraque através da plataforma Wikileaks. Já naquela época, começo de 2011, havia indícios de que o governo norte-americano estaria promovendo iniciativas de vigilância em massa,

através da contratação de serviços terceirizados dessas empresas privadas. Em meados de 2013, no entanto, as informações fornecidas pelo analista de sistemas, Edward Snowden, tornaram público que os Estados Unidos mantinham um amplo programa de vigilância, com sede na NSA, envolvendo a captação de dados, e-mails, ligações telefônicas, movimentação de cartão de crédito e qualquer tipo de comunicação entre cidadãos, empresas e governos em âmbito nacional e internacional, através da colaboração ativa de grandes empresas do setor. Como se tornou público depois, o Brasil era um dos principais alvos do esquema de vigilância divulgado por Snowden, o que lançou o país de modo definitivo na discussão sobre segurança, privacidade e conflitos cibernéticos.

As revelações de Snowden – cuja história é retrata de forma brilhante no filme de Laura Poitras, Citzen four, vencedor do Oscar de melhor documentário em 2015 – lançam uma luz inquietante sobre a atuação dos Estados Unidos na vigilância individual dentro e fora do seu país. Nesse esquema, as grandes empresas norte-americanas de internet e tecnologia como a Google, a Apple, o Yahoo e o Facebook contribuem de forma ativa, fornecendo dados de seus clientes e usuários. Resta saber, agora, qual é a participação do governo e das empresas norte-americanas não só nas redes de vigilância digital mas, também, na ciberpolítica de forma mais ampla, em especial nas formas mais modernas de militância na rede como as que Philip Howard analisa em países islâmicos e como as que, desde a eleição presidencial de 2014, estamos vendo atuar no Brasil, com efeitos importantes sobre o atual governo em âmbito federal.

Maria Caramez Carlotto é Professora do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.

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