PARA O DEBATE: Crises políticas e incertezas da integração na América do Sul

Crises políticas e incertezas da integração na América do Sul

Por Marcos Roseira

É amplamente conhecido por diferentes setores sociais que as últimas três décadas foram marcadas por um grande esforço no aprofundamento das relações intracontinentais sul-americanas. Ao longo desses anos, os projetos de integração passaram por diferentes fases políticas e econômicas. Ainda que caracterizado por uma oscilação entre tendências de atrito (crises) ou cooperação, o quadro geral foi dominado por uma reversão da conjuntura histórica de rivalidades e disputas geopolíticas.

O Mercosul é emblemático nesse sentido. Fundado com a assinatura do Tratado de Assunção (1991), o bloco surge como um pacto entre as elites regionais visando a superação de dois processos que atravancavam o desenvolvimento de seus Estados parte: subordinação externa e fragmentação interna. De um lado, o projeto de regionalização era resultado das transformações da economia política internacional, que com a globalização caminhava para novas formas de integração transnacional. Mas de outro, respondia às demandas internas de desenvolvimento mais autônomo. Não por acaso, a aproximação de Brasil e Argentina, sob os governos de José Sarney e Raul Alfonsín, dá-se sob os escombros do nacional desenvolvimentismo e o limiar do neoliberalismo na região. Tratava-se, portanto, de um esforço de inserção nas novas configurações político-econômicas globais por meio da cooperação regional. A regionalização passou a ser entendida simultaneamente pelas elites políticas e econômicas sul-americanas como meio de fortalecimento nacional e de inserção nas novas redes políticas e econômicas globais.

Se sob o neoliberalismo dos anos 1990 essa tendência esteve circunscrita ao aspecto comercial, as crises econômicas entre 1999 e 2002 ampliaram o escopo da regionalização de três formas nos anos seguintes. Primeiro, destaca-se o estabelecimento de uma coalização política entre algumas das principais forças regionais, como Argentina, Brasil e Venezuela. Estes países, comandados por governos de esquerda ou centro-esquerda, adotam uma agenda internacional mais próxima (com reflexo em suas posições em instituições e fóruns internacionais) e mais ajustada aos interesses de países em desenvolvimento. Segundo, o esforço liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu ministro das relações exteriores, Celso Amorim, levou ao alargamento geográfico da integração do Cone Sul para toda América do Sul. Por fim, houve um aprofundamento institucional da integração, aspecto que se consolida principalmente com a criação da UNASUL em 2008.

É importante considerar que mesmo no período de neoliberalismo mais radical, predominava o consenso de que o desenvolvimento dos países passava pelo desenvolvimento regional. No entanto, a retomada do papel do Estado nas políticas econômicas e sociais em muitos dos países sul-americanos ressuscitou antigas questões políticas que estiveram presente durante praticamente todo século XX na maioria da região. Qual caminho precisam seguir esses países? Deve-se privilegiar a construção de um desenvolvimento associado com maior autonomia regional, ou subordinar o desenvolvimento aos projetos políticos forjados pelas potências centrais?

Não é de se estranhar que o debate político em diferentes países foi impregnado da discussão sobre a política continental, algo inédito e que reflete o novo grau de interdependência política. Nesse contexto, a região revive uma polarização entre dois modelos, que por sua vez deriva de diferentes perspectivas de desenvolvimento nacional.

De um lado, governos de esquerda e centro-esquerda que, mesmo sem constituir uma integração mais aprofundada como nos moldes europeus, são defensores do aperfeiçoamento da união aduaneira, mecanismo de integração que abrange os membros plenos do Mercosul e permite uma política comercial comum. Essa posição é evidente nos países mais industrializados do Cone Sul e na Venezuela, isto é, naqueles que são os grandes delineadores da nova política regional. Mas de outro lado, há uma defesa explícita de um modelo de integração regional restrito ao livre comércio feita por grupos de oposição nesses mesmos países. Portanto, um modelo regionalmente menos interdependente e mais aberto aos fluxos comerciais globais. No Brasil, os dois últimos candidatos a presidente de oposição que alcançaram o segundo turno defenderam abertamente o fim da união aduaneira no Mercosul em prol de uma maior liberdade para acordos multilaterais e bilaterais com países além-mar.

É nesse contexto que as principais forças do Mercosul (Argentina, Brasil e Venezuela) experimentam uma crescente radicalização da disputa política interna. Em parte, isso resulta dos desdobramentos da crise mundial e do próprio desgaste do modelo de desenvolvimento adotado desde o começo dos anos 2000. Entretanto, as atuais tensões políticas constituem uma espécie de “eterno retorno” de uma antiga polarização que opõe (neo) liberais e desenvolvimentistas. Mas devemos destacar uma grande diferença em relação aos períodos anteriores: na atual conjuntura político-econômica os conflitos internos não se encerram nas fronteiras nacionais.

O grande debate em torno do papel do Estado, das empresas estatais, dos agentes públicos, do mercado e das grandes corporações privadas ganha desdobramentos regionais. As elites conservadoras sul-americanas entendem, ainda que as evidências apontem para direção contrária, que a integração regional deve levar a uma conjuntura marcada pela autorregularão do mercado e não por políticas de Estado. Entendem que uma integração mais profunda seria ineficiente por impedir a liberdade dos agentes econômicos em costurar uma rede de acordos bilaterais e multilaterais segundo os interesses corporativos, ainda que sob a atuação do Estado.

Esses são aspectos centrais da atual crise política. A regionalização deve ser entendida como um mero mecanismo de dinamização de mercado para grande parcela das elites do continente. Essa visão é o extremo oposto do projeto conduzido nos anos 2000, onde a integração prevalece como base para ampliação da interdependência política e econômica continental, que por sua vez se reflete na posição de seus países em instituições e fóruns internacionais. Portanto, é preciso pensar acerca dos riscos regionais de uma reversão da atual tendência política na América do Sul. Para além da integração, os impactos seriam profundos na própria agenda de inserção internacional, cuja base tem sido o projeto de autonomia regional.

Antonio Marcos Roseira é professor no Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC

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