PARA O DEBATE: A crise no Mediterrâneo à luz da situação mundial dos refugiados

A crise no Mediterrâneo à luz da situação mundial dos refugiados

Por Julia Bertino

As recentes notícias retratando a tragédia humana no mar Mediterrâneo, com barcos abarrotados de migrantes após realizarem uma arriscada travessia a fim de atingir o velho continente, suscitam importantes pontos para a reflexão.

Segundo dados disponibilizados pelo ACNUR¹, apenas nos cinco primeiros meses deste ano foram contabilizadas 1.850 mortes e 105.000 pessoas que tiveram êxito, das quais 55.000 entraram na Itália e quase 48.000 na Grécia. Mais de 85% dos que chegaram em território grego são provenientes de países assolados por conflitos, como: Síria, Afeganistão, Somália e Iraque. Há de se registrar que 53% da população mundial refugiada atualmente² é constituída tão-somente por sírios (3,8 milhões), afegãos (2,5 milhões) e somalis (1,1 milhão) – sendo a maioria acolhida em países vizinhos.

Estas são, portanto, pessoas fugindo de situações de violência, marcadas por perseguições e outras violações de direitos humanos, buscando preservar, sobretudo suas vidas – o que os enquadra na categoria jurídica de refugiado. Muito tem se debatido na área das migrações internacionais acerca da distinção conceitual entre migrante e refugiado. Grosso modo, em que pesem as críticas, entende-se que o migrante se desloca em função da situação econômica no país de origem, à procura de melhores oportunidades de vida no país de destino. Ao refugiado, em contrapartida, não haveria escolha ou opção, já que ele não pode regressar à terra natal, devido a conflitos e instabilidade política interna. Os refugiados seriam, assim, tidos como os reais merecedores de proteção internacional.

Contudo, colocam-se em pauta as efetivas condições de que essas pessoas tenham acesso ao refúgio. Isso significa que: aqueles forçados a deixar os seus lares, após vivenciarem processos de violência generalizada, correm o risco de ter negada a possibilidade de sobrevivência.

Como bem constatou Hannah Arendt, ao abordar os movimentos migratórios no contexto pós-Primeira Guerra, “quando perdiam os seus direitos humanos, perdiam todos os direitos: eram o refugo da terra"³. Vistos como indesejáveis, os refugiados oriundos de países da África, Ásia e do Oriente Médio em direção a países da Europa trazem consigo bagagens e repertórios sociais, culturais, linguísticos, religiosos, além de aspectos étnico-raciais não tidos como compatíveis àqueles compartilhados pelas sociedades de acolhimento – que, diga-se de passagem, podem não ser muito acolhedoras.

Na véspera do Dia Mundial do Refugiado, a ser rememorado amanhã (20/06), tais apontamentos nos levam a questionar as possibilidades concretas dessas pessoas de fato serem recebidas como refugiadas e poderem traçar novos caminhos rumo à reconstrução de suas vidas e ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades nas sociedades receptoras.

Em tempos náufragos, vale resgatar, por fim, o significado dos aclamados versos de Pessoa: “Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu”.

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¹UNHCR. Special Mediterranean Initiative: plan for an enhanced operational response. June-December 2015. Disponível em: <http://www.unhcr.org/cgi-bin/texis/vtx/home/opendocPDFViewer.html?docid=557ad7e49&query=mediterranean>. Acesso em: 17 jun. 2015.

²UNHCR. Global trends: forced displacement in 2014. 2015. Disponível em: <http://unhcr.org/556725e69.html#_ga=1.188867758.444355445.1393506422>. Acesso em: 18 jun. 2015.

³ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 300.

 

Julia Bertino Moreira é Professora no Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC

 
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