PARA O DEBATE: EUA: Pivô asiático e disputa com a China

EUA: Pivô asiático e disputa com a China

Por Flávio Rocha

Em 2011, o presidente Barack Obama anunciou uma mudança no eixo da política externa dos EUA. Acoplada a essa alteração, houve uma alteração em relação a política de segurança do país, com um óbvio reflexo nas questões comerciais. 

Desde 2001, por conta dos atentados da Al Qaeda, a diplomacia norte-americana concentrou-se no combate ao terrorismo e na defesa da intervenção militar no Iraque e no Afeganistão. Durante os dois termos da presidência de George W. Bush, as parcerias estratégicas foram reforçadas com aliados tradicionais na Europa, Ásia e África, no sentido de combater a propagação de ataques terroristas e de ideias que fossem dirigidos contra os interesses dos Estados Unidos – e com o foco nas ações da Al Qaeda e dos grupos que foram se declarando como seus filiados depois do 11 de setembro. Houve o reforço mútuo com as posições israelenses, egípcias e indianas, entre outros. Até mesmo uma cooperação com a Rússia foi levada a termo por conta dos interesses comuns em conter o que ambos viam como a ameaça de um “terrorismo de matriz islâmica”. 

Após a sua eleição, Obama e os estrategistas americanos adotaram uma postura relativamente tradicional. Com o enfraquecimento da ameaça terrorista (em que pese o surgimento do Daesh), eles decidiram voltar as suas atenções para o rival ascendente na Ásia, a China. Optou-se, aqui, por um clássico comportamento de realpolitik, uma grande potência estabelecida resolve enfrentar o desafio lançado por uma potência em ascensão. A ideia, básica, era moldar a realidade geopolítica regional na Ásia-Pacífico de modo a conter e acomodar as ações de Pequim. 

Com esse objetivo, foi anunciado o Asian pivot. A frota americana começou a ser realocada, em números crescentes, na região do Pacífico. Simultaneamente, uma tendência que já fora iniciada após o colapso soviético, acelerou-se, com uma maior redução do pessoal militar e diplomático na Europa. 

Dentro dessa estratégia, três movimentos exemplificam bem a intenção dos EUA de lidar com a ascensão chinesa. Em primeiro lugar, os EUA reforçam a aproximação com seus aliados tradicionais, que estão igualmente preocupados com a China. Desses, o mais importante é o Japão. Nos últimos cinco anos, houve um apoio tácito de Washington nas mudanças da política doméstica japonesa, e em especial na mudança dos dispositivos constitucionais anti-bélicos que eram um legado da II Guerra Mundial. Washington esperava – e conseguiu – estimular Tóquio a aumentar o gasto militar e a ser mais partícipe regionalmente em arranjos diplomáticos de segurança e defesa. Contribuiu, para isso, a confrontação que ocorre até o presente momento entre nipônicos e chineses por conta das ilhas Senkaku/Diaoyu, e que tem lances políticos (compra das ilhas do proprietário particular pelo governo japonês) e militares (aviões de combate e vasos de guerra de ambos os países praticando ostensivas demonstrações de força na região). 

Paralelamente a disputa com o Japão, a China está envolvida em outra contenda por direitos territoriais e marítimos, dessa vez no Mar da China Meridional. O que nos leva ao segundo movimento: os chineses estão num processo de disputa intensa com Vietnã, Brunei, Malásia, Filipinas e Taiwan pela posse e direitos de navegação que envolvem as ilhas Spratlys e Paracels. Além da importância estratégica para o comércio chinês (exportação de produtos e importação de bens estratégicos, como petróleo e commodities agrícolas), bem como para o comércio dos demais países e de Taiwan, há a questão da pesca e a existência de gás na região. Os EUA tem feito demonstrações de força no sentido de apoiar os países envolvidos contra Pequim, se aproximando, por exemplo, do Vietnã (recentemente, as lideranças políticas norte-americanas passaram a discutir medidas no sentido de permitir a venda de armas para o antigo inimigo) e enviando porta-aviões e outros vasos de guerra para a região, de modo a “garantir os livres direitos de navegação” e os oceanos como um bem público global (declaração do secretário de defesa, Ash Carter). 

Finalmente, o terceiro movimento: para coroar (por enquanto) o Asian Pivot, os EUA patrocinaram a construção do TPP (Trans-Pacific Partnership), tendo o Japão como o parceiro econômico e diplomático mais importante. Uma vez constituído, será criado um mercado composto de, aproximadamente, 800 milhões de pessoas. Os principais Australia, Nova Zelândia, Canadá, Mexico, Chile e Peru, com a possibilidade de adesão, num futuro próximo, da Coréia do Sul. 

Duas coisas chamam a atenção no TPP: primeiro, a exclusão da economia mais dinâmica da Ásia, a China, e, em segundo lugar, o fato de que quatro deles estão envolvidos nos mais complicados contenciosos diplomático-militares com a própria China (Japão, Vietnã, Brunei e Malásia). Se, e quando, esse acordo comercial for ratificado por todos os países, haverá um reforço geopolítico dos EUA e de seus aliados no sentido de poder tomar a dianteira em qualquer negociação comercial em escala global. Ao mesmo tempo, a China terá diminuída a sua influência nessa matéria. A geopolítica encontrou a economia... 

Certamente, a China não está parada observando a constituição desse desafio estratégico. Ela já vem construindo uma possível alternativa, a Rota da Seda, e que criará (ou recriará, dependendo do ponto de vista) uma outra possibilidade de comércio intensivo com a Ásia Central e a Europa, incluindo a Rússia. Ela também tem intensificado o seu programa de expansão naval, agregando submarinos e navios de superfície. Recentemente, o seu primeiro porta-aviões entrou em operação, e um segundo está em acelerado processo de construção. 

Os cenários são muito fluídos. Dentro de uma perspectiva atual, é de bom senso levar em consideração que a China constitui um mercado muito importante para ficar de fora de qualquer arranjo comercial mais amplo no Pacífico. Ela conta, ainda, com uma série de iniciativas econômicas que são geopoliticamente orientadas, isto é, há investimentos em infra-estrutura que não são lucrativos, e que ela faz em países como Paquistão e Indonésia (e que são tocados com apoio governamental e por empresas de controle estatal), mas que dão lastro geopolítico a Pequim em futuras barganhas com os EUA. 

Também é importante levar em consideração a ação de dois outros gigantes que atuam na Ásia. De um lado, a Rússia, que também tem reorientado seu dispositivo naval para a região. De outro, a Índia, que tem um histórico delicado com a China, e que tem sido cortejada diplomaticamente pelos sucessivos governos estadunidenses, sejam eles republicanos ou democratas. Até o presente momento, os movimentos do Primeiro Ministro Modi dão a entender que os indianos pretendem se aproveitar desse cenário de modo a barganhar com os vários lados envolvidos. 

Qualquer que seja o resultado, seguramente as disputas protagonizadas pelos EUA e pela China, na Ásia-Pacífico, terão reflexo nos diferentes cenários estratégicos, econômicos e políticos do mundo. O que inclui, é claro, o Brasil...

Flávio Rocha é professor no Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC

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