PARA O DEBATE: Path Dependency: a trajetória da relação conturbada Reino Unido - União Europeia

Path Dependency: a trajetória da relação conturbada Reino Unido – União Europeia 

Por: Giorgio Romano Schutte 

O surpreendente resultado do plebiscito sobre a saída do Reino Unido da União Europeia deve ser compreendido a partir de quatro dimensões que atuaram em seu conjunto e conspiraram para o pior resultado possível: a dimensão histórica, a política, a econômica e a da migração. Aqui será abordada a dimensão histórica.

A relação entre o Reino Unido e processo de integração europeia foi sempre muito conturbada. Nunca houve paixão ou lideranças britânicas que vestissem a camisa. Winston Churchill defendia, já na década de 1920, uma integração europeia para evitar o ressurgimento do conflito entre Alemanha e França. Falava em “Estados Unidos da Europa”, mas o Reino Unido (RU) deveria ficar fora, porque teria outro destino. Após a segunda Guerra Mundial, com o apoio dos EUA, o esforço para a integração europeia se materializou no Tratado de Roma de 1957, que deu origem à Comunidade Europeia (CE), a precursora da União Europeia (UE). O Reino Unido acompanhou as negociações, mas acabou não entrando, por vários motivos. Em primeiro lugar acreditava ainda que pudesse reconstituir em novas bases as vantagens econômicas do seu antigo império, em torno do Commonwealth. Trata-se de uma organização criada em 1949 pelo Reino Unido para manter suas ex-colônias de alguma forma associadas*. Junto com isso, o RU  defendeu uma integração somente comercial e sem tarifas externas comuns. Havia uma incompatibilidade entre a política agrícola proposta na Europa continental e a prática do RU, que desde o século 19 apostava em importação de alimentos baratos, em particular de suas colônias e ex-colônias. De outro lado, a CE iria apostar em uma política de segurança alimentar baseada em uma política comunitária de subsídios à produção interna e tarifas externas comuns. Essas tarifas  seriam inclusive uma fonte para financiar essa política comunitária. Além disso, o Reino Unido apostava em uma relação especial (special relation) com os EUA, apesar deste, desde o início, ter pressionado o RU a entrar na CE. E por último, mas não menos importante, havia uma desconfiança com relação ao eixo França-Alemanha que estava se tornando o motor do processo de integração. Ao final, o RU foi o país que inventou a soberania democrática e resistiu bravamente desde então às tentativas de invadir a ilha, seja por Napoleão, seja por Hitler. Não havia porque abrir mão da sua soberania em prol de um projeto de integração. Se fosse pela integração, que isso se limitasse ao livre comércio, sem nenhuma pretensão de integração política ou o estabelecimento de normas ou instituições de caráter supranacional. Houve até uma tentativa de esvaziar a Comunidade Europeia, lançando como alternativa, em 1960, a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), que, diante da forte oposição do governo francês, já sob liderança do presidente Charles de Gaulle, acabou se restringindo a um grupo de países de menor relevância econômica e política (Áustria, Dinamarca, Portugal, Noruega, RU, Suécia e Suíça)**. Quando ficou claro que os mercados da EFTA eram muito menores, que o processo de descolonização era irreversível e que os EUA continuavam pressionando para que o país entrasse, o governo conservador de Harold MacMillan mudou de ideia e solicitou a adesão, em 1961, embora o assunto não tivesse entrado na campanha eleitoral do ano anterior. Desta vez, o presidente da França, Charles de Gaulle, acabou vetando a entrada por dois motivos. Primeiro porque o RU queria tratamento especial (special treatment), o que significava na prática não ter que comprar o pacote todo, mas somente o que interessava para o RU, com o argumento da especificidade da sua estrutura econômica e política com relação à Europa continental. Segundo, porque de Gaulle estava desconfiado do provável aumento da influência dos EUA no processo de integração por meio de sua relação com o RU. Internamente, a iniciativa do MacMillan dividiu os Tories (partido conversador) e Labour (partido trabalhista). Em 1967, já sob o governo dos trabalhistas, o RU pediu novamente adesão e de Gaulle vetou a entrada. Foi somente em 1973 que o governo conservador de Edward Heath conseguiu o apoio interno e externo para a entrada do país. No ano seguinte, nas eleições gerais, os trabalhistas, liderados pelo Harold Wilson, lançaram a promessa de renegociar o acordo de adesão e submetê-lo a um referendum. Uma aposta que deu certo. Harold Wilson ganhou as eleições (1974) e em seguida o referendum (1975), com dois terços dos votos, apesar das resistências internas no seu partido. Esse episódio talvez tenha inspirado David Cameron, que também prometeu para sua campanha renegociação (para defender melhor os interesses do RU e conseguir ampliar seu tratamento especial)***.  

Em um primeiro momento, Margaret Thatcher, primeira-ministra de 1979 até 1990, demostrou uma posição pró-europeia. Em meados da década de 1980, sob a liderança do Jacques Delors, socialista francês, a Comissão Europeia começou a demonstrar um forte ativismo e liderança política. Delors estava convencido da necessidade de aprofundar o processo de integração para poder manter o pacto social diante dos processos de internacionalização e reestruturação do capitalismo. Quanto mais Delors avançava, mais a Thatcher se afastava da Europa. E mais exigências ela começou a estabelecer. O processo de intensificação da UE resultou no famoso Tratado de Maastricht (1992), com a União Monetária (a construção do Euro), o fortalecimento do Parlamento Europeu e, mais tarde, os Acordos de Schengen para superar de vez as fronteiras e tratar os deslocamentos entre esses países como viagens domésticas. Delors tinha uma preocupação com a legitimidade do processo e incluiu o chamado Capítulo Social prevendo normas mínimas de direitos trabalhistas. Tudo isso foi longe demais para o governo Thatcher e seu sucessor, também conservador, John Major (1990-1997). O RU começou uma rodada de duras negociações exigindo vários tratamentos especiais, a esta altura conhecidas como opt-outs (ficar de fora).  Ou seja, o RU continuava na UE, mas exigiu o direito de ficar fora de partes importantes da nova integração, em particular da união monetária, ou seja, vai ficar fora do Euro, dos Acordos de Schengen e do Capítulo Social. Somente no último caso o governo trabalhista de Tony Blair (1997-2007) revertou esse opt-out. 

Conclusão: o RU sempre teve uma relação conturbada com o processo de integração, chegando a adotar uma estratégia de ficar com uma perna dentro e outra fora. Assim tornou-se o centro financeiro associado a Nova York, fazendo a ponte entre a esfera do dólar e a esfera do euro e garantindo um ambiente de negócios mais liberal, menos regulado. Isso garantiu também que o RU se tornasse a porta de entrada de capitais produtivos de outros países da UE, dos EUA e de países com Índia e China. A oposta sempre foi aproveitar o acesso ao mercado comum europeu, submetendo-se o mínimo possível à regulação europeia. E, do ponto de vista geopolítico, mantendo firme sua “special relation” com os EUA, expressa de forma dramática no apoio incondicional e na participação ativa na invasão no Iraque (2003), que contou com forte oposição da Alemanha e França. 

*Hoje ela conta com 53 membros e funciona mais como uma rede de intercâmbio e exercício de poder diplomático do RU. Ver: http://thecommonwealth.org/

**Ela sobrevive, e a volta do Reino Unido à EFTA é apontada por alguns defensores do Brexit como opção. São membros hoje Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça. É através da EFTA que os três primeiros países estão associados à União Europeia na chamada Área Econômica Europeia. Esta prevê livre circulação de capital, bens, serviços e pessoas, mas sem aderir às demais políticas da UE, como as políticas comercial, agrícola ou monetária. Esta adesão prevê contribuições para a UE.

***Observe que, de acordo com relatos não contestados, Cameron teria declarado a seus colegas, em uma reunião do G-20 em 2014, que ganharia com dois terços dos votos...

Giorgio Romano Schutte é professor no Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC

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