PARA O DEBATE: Crises políticas e incertezas da integração na América do Sul
Crises políticas e incertezas da integração na América do Sul
Por Marcos Roseira
É amplamente conhecido por diferentes setores sociais que as últimas três décadas foram marcadas por um grande esforço no aprofundamento das relações intracontinentais sul-americanas. Ao longo desses anos, os projetos de integração passaram por diferentes fases políticas e econômicas. Ainda que caracterizado por uma oscilação entre tendências de atrito (crises) ou cooperação, o quadro geral foi dominado por uma reversão da conjuntura histórica de rivalidades e disputas geopolíticas.
O Mercosul é emblemático nesse sentido. Fundado com a assinatura do Tratado de Assunção (1991), o bloco surge como um pacto entre as elites regionais visando a superação de dois processos que atravancavam o desenvolvimento de seus Estados parte: subordinação externa e fragmentação interna. De um lado, o projeto de regionalização era resultado das transformações da economia política internacional, que com a globalização caminhava para novas formas de integração transnacional. Mas de outro, respondia às demandas internas de desenvolvimento mais autônomo. Não por acaso, a aproximação de Brasil e Argentina, sob os governos de José Sarney e Raul Alfonsín, dá-se sob os escombros do nacional desenvolvimentismo e o limiar do neoliberalismo na região. Tratava-se, portanto, de um esforço de inserção nas novas configurações político-econômicas globais por meio da cooperação regional. A regionalização passou a ser entendida simultaneamente pelas elites políticas e econômicas sul-americanas como meio de fortalecimento nacional e de inserção nas novas redes políticas e econômicas globais.
Se sob o neoliberalismo dos anos 1990 essa tendência esteve circunscrita ao aspecto comercial, as crises econômicas entre 1999 e 2002 ampliaram o escopo da regionalização de três formas nos anos seguintes. Primeiro, destaca-se o estabelecimento de uma coalização política entre algumas das principais forças regionais, como Argentina, Brasil e Venezuela. Estes países, comandados por governos de esquerda ou centro-esquerda, adotam uma agenda internacional mais próxima (com reflexo em suas posições em instituições e fóruns internacionais) e mais ajustada aos interesses de países em desenvolvimento. Segundo, o esforço liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu ministro das relações exteriores, Celso Amorim, levou ao alargamento geográfico da integração do Cone Sul para toda América do Sul. Por fim, houve um aprofundamento institucional da integração, aspecto que se consolida principalmente com a criação da UNASUL em 2008.
É importante considerar que mesmo no período de neoliberalismo mais radical, predominava o consenso de que o desenvolvimento dos países passava pelo desenvolvimento regional. No entanto, a retomada do papel do Estado nas políticas econômicas e sociais em muitos dos países sul-americanos ressuscitou antigas questões políticas que estiveram presente durante praticamente todo século XX na maioria da região. Qual caminho precisam seguir esses países? Deve-se privilegiar a construção de um desenvolvimento associado com maior autonomia regional, ou subordinar o desenvolvimento aos projetos políticos forjados pelas potências centrais?
Não é de se estranhar que o debate político em diferentes países foi impregnado da discussão sobre a política continental, algo inédito e que reflete o novo grau de interdependência política. Nesse contexto, a região revive uma polarização entre dois modelos, que por sua vez deriva de diferentes perspectivas de desenvolvimento nacional.
De um lado, governos de esquerda e centro-esquerda que, mesmo sem constituir uma integração mais aprofundada como nos moldes europeus, são defensores do aperfeiçoamento da união aduaneira, mecanismo de integração que abrange os membros plenos do Mercosul e permite uma política comercial comum. Essa posição é evidente nos países mais industrializados do Cone Sul e na Venezuela, isto é, naqueles que são os grandes delineadores da nova política regional. Mas de outro lado, há uma defesa explícita de um modelo de integração regional restrito ao livre comércio feita por grupos de oposição nesses mesmos países. Portanto, um modelo regionalmente menos interdependente e mais aberto aos fluxos comerciais globais. No Brasil, os dois últimos candidatos a presidente de oposição que alcançaram o segundo turno defenderam abertamente o fim da união aduaneira no Mercosul em prol de uma maior liberdade para acordos multilaterais e bilaterais com países além-mar.
É nesse contexto que as principais forças do Mercosul (Argentina, Brasil e Venezuela) experimentam uma crescente radicalização da disputa política interna. Em parte, isso resulta dos desdobramentos da crise mundial e do próprio desgaste do modelo de desenvolvimento adotado desde o começo dos anos 2000. Entretanto, as atuais tensões políticas constituem uma espécie de “eterno retorno” de uma antiga polarização que opõe (neo) liberais e desenvolvimentistas. Mas devemos destacar uma grande diferença em relação aos períodos anteriores: na atual conjuntura político-econômica os conflitos internos não se encerram nas fronteiras nacionais.
O grande debate em torno do papel do Estado, das empresas estatais, dos agentes públicos, do mercado e das grandes corporações privadas ganha desdobramentos regionais. As elites conservadoras sul-americanas entendem, ainda que as evidências apontem para direção contrária, que a integração regional deve levar a uma conjuntura marcada pela autorregularão do mercado e não por políticas de Estado. Entendem que uma integração mais profunda seria ineficiente por impedir a liberdade dos agentes econômicos em costurar uma rede de acordos bilaterais e multilaterais segundo os interesses corporativos, ainda que sob a atuação do Estado.
Esses são aspectos centrais da atual crise política. A regionalização deve ser entendida como um mero mecanismo de dinamização de mercado para grande parcela das elites do continente. Essa visão é o extremo oposto do projeto conduzido nos anos 2000, onde a integração prevalece como base para ampliação da interdependência política e econômica continental, que por sua vez se reflete na posição de seus países em instituições e fóruns internacionais. Portanto, é preciso pensar acerca dos riscos regionais de uma reversão da atual tendência política na América do Sul. Para além da integração, os impactos seriam profundos na própria agenda de inserção internacional, cuja base tem sido o projeto de autonomia regional.
Antonio Marcos Roseira é professor no Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC
PARA O DEBATE: Swissleaks, a globalização da burguesia e da disputa pelo poder
Swissleaks, a globalização da burguesia e da disputa pelo poder
Por José Paulo Guedes
O Swiss Leaks é uma investigação multinacional e multilateral conduzida pela sociedade civil, representada por mais de 130 jornalistas, de 49 países. Trata-se da revelação de um gigantesco esquema de evasão fiscal operado pelo banco multinacional britânico HSBC através de sua subsidiária suíça, o HSBC Private Bank. A imprensa revelou que 180,6 bilhões de euros (cerca de 613 bilhões de reais) foram movimentados em contas mantidas no HSBC, em Genebra, por mais de 100.000 clientes e 20.000 empresas offshore, entre novembro de 2006 e março de 2007.
Assim como no caso dos Wikileaks (revelados em parte por Chelsea Manning nascido Bradley Manning) e dos programas de vigilância da NSA (revelados por Edward Snowden), os dados do esquema de corrupção foram revelados por um ex-funcionário do banco, o engenheiro de software Hervé Falciani, que entregou os arquivos às autoridades da França no final de 2008. O fato de uma pessoa afetar uma complexa organização mundial parece ser um forte indício de que o poder hoje é muito mais distribuído e assimétrico do que antes.
Segundo Joseph Nye (Cyber Power, 2010), atualmente, atores individuais, organizados em redes minimamente estruturadas, têm o poder de influenciar diretamente a política externa, uma vez que o custo de se entrar no ambiente virtual (e no caso, de denunciar), reduziu na mesma medida em que se difundiram as novas tecnologias da informação e da comunicação. Além de ser possível, com certo esforço político e domínio técnico, garantir certo anonimato na rede. Isso aponta para o surgimento de novas assimetrias nas relações de poder, quando se leva em conta o impacto que a denúncia de indivíduos relativamente isolados produz em governos e grandes corporações como o HSBC.
Além da questão do poder, a denúncia revela outra dimensão importante: que o Capitalismo está passando por uma fase de grande concentração e centralização de capital, em que poucas empresas e poucos indivíduos passam a controlar grande volume de recursos, com novas e fortalecidas possibilidades de maximizar seus lucros e rendimentos, mesmo que esse algo seja um esquema gritantemente ilegal e criminoso.
No caso tratado, a investigação considera que o banco obteve lucros ao abrigar dinheiro de sonegadores fiscais e outros transgressores da lei de diversos países. Em relação ao Brasil, por exemplo, o número de clientes chega a 8.867 indivíduos, cujo saldo total das contas, no final de 2013, girava em torno de 7 bilhões de dólares. Vale notar que o Brasil, atualmente, é o sétimo PIB do mundo, mas ocupa o 4º lugar em número de clientes envolvidos no caso HSBC.
Longe de ser algo surpreendente, o que nos coloca neste lugar privilegiado no ranking do “swissleaks” é a própria lógica de acumulação de capital somada à atual conjuntura. Diversos autores vêm mostrando que, no Brasil, operam-se as mais altas taxas de lucro, quando comparadas às taxas médias mundiais (Michael Roberts, link: https://thenextrecession.wordpress.com/2015/03/16/brazil-a-dirty-scum-on-polluted-water/). Do ponto de vista estritamente capitalista, onde o que vale é a velha e boa fórmula D - [M] - D´, por mais absurdo que pareça, os evasores brasileiros, mesmo cometendo um crime fiscal, raciocinam de forma correta: evadir divisas sem pagar impostos, esperando uma desvalorização nominal do Real (o que por acaso está ocorrendo neste exato momento) para reintroduzir as divisas externas com maior poder de compra. Essa lógica, óbvia para a macroeconomia internacional, parece operar para quase todos os países cujas burguesias estão envolvidas no esquema.
Assim, não muito diferente do que Marx escreveu em 'O Capital e no Manifesto Comunista', a internacionalização da classe burguesa fruto da internacionalização do capital é, hoje, uma realidade próxima, com o capital mundial se centralizando cada vez mais nas mãos de um pequeno grupo social, que, além de embolsar os lucros produzidos em todo o lugar, compartilha não só a cultura, as viagens e os espaços cosmopolitas, mas também, e cada vez mais, os mesmo esquemas de corrupção, as mesmas linhas de evasão fiscal através de ligações externas comuns. Muito atrás na luta segue a classe trabalhadora, mas sem perder a sua rival de vista, prova disso foi a cooperação e a coordenação internacional dos jornalistas que denunciaram o caso em questão.
É sob essa ótica que devemos analisar a grande quantidade de guerras entre Estados-nações, grupos religiosos e etnias. Ou o avanço da xenofobia (como o caso do Charlie na França no início do ano) ou ainda os ataques aos direitos dos trabalhadores em todas as frentes e em todo o lugar. Por outro lado é possível dizer que existem luzes difusas e crescentes que podem levar ao fim desse túnel e não à barbárie. Exemplo disso é a mobilização mundial em torno das questões ambientais, o espraiamento dos conhecimentos e das inovações (para além das fronteiras nacionais e das crescentes barreiras da propriedade intelectual), o aumento de missões para combater a fome, a miséria e a violência no mundo, o amadurecimento da cooperação sindical e dos movimentos sociais no âmbito internacional.
José Paulo Guedes é professor no Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC
PARA O DEBATE: Podemos, saudável novidade na Espanha em crise
Podemos, saudável novidade na Espanha em crise
Por Gilberto Maringoni
Uma mudança significativa está por ocorrer no sistema político espanhol, nas eleições para o Parlamento Europeu, em 25 de maio.
Neste dia pode-se quebrar um bipartidarismo tácito, existente desde a queda da ditadura de Francisco Franco (1936-75). Nesse período, alternaram-se no poder o direitista Partido Popular (PP) e o socialdemocrata Partido Socialista Obrero Español (PSOE). Embora haja diferenças entre ambos, o PSOE aplicou com afinco medidas de corte liberal na economia, como privatizações e mudanças em políticas sociais, enquanto comandou o governo (1982-1996 e 2004-2011). Com isso, no plano macroeconômico, reduziram-se fortemente as diferenças entre os social-democratas e o PP, atualmente no poder.
A Espanha, depois da Grécia e Portugal, é o país europeu mais afetado pela crise de 2008-09. O desemprego atinge a fantástica taxa de 24% da população economicamente ativa. Entre os jovens de 18 a 25 anos, o percentual alcança 50%. Entre 2011 e 2013, o crescimento do PIB foi negativo. No ano passado, houve leve recuperação e o país cresceu 1,4%.
DESALENTO E ORGANIZAÇÃO
Nasceu daí um enorme desalento da juventude em relação à política institucional, com o afastamento entre o descontentamento das ruas e o poder político.
Num país em que o voto não é obrigatório, o panorama recente tem sido de abstenção eleitoral acima de 70%. Tal quadro possibilitou a volta do PP ao poder, há quatro anos, apesar de gigantescas manifestações de protestos contra a situação econômica, nas principais cidades. Mas até 2013, a insatisfação popular não havia gerado organização e força política.
A novidade dos últimos meses é o fenômeno do Podemos. Lançado por cinco professores universitários, em janeiro de 2014, o partido literalmente impactou a agenda nacional.
Desde o final do ano passado, o Podemos aparece como favorito para as eleições do próximo mês, com 23,4% de intenções de voto, segundo o instituto de pesquisas Observatório. O PP vem logo atrás, com 22%, seguido pelo PSOE e pelo liberal-centrista Ciudadanos, ambos com 19%. Izquierda Unida coloca-se bem abaixo, com 2,9%. O social liberal Unión, Progreso y Democracia permanece na lanterna, com 2,6%.
MULTIDÕES DE JOVENS
Arrastando multidões de jovens em manifestações públicas e tendo Pablo Iglesias, um carismático professor universitário de 35 anos, como principal figura pública, o Podemos se propõe a ser uma alternativa às políticas de austeridade impostas pela troika (Comissão Européia, Banco Central Europeu e FMI).
Frequentemente comparado ao Syriza, partido de esquerda que governa a Grécia, a meta do Podemos é chegar às eleições gerais de 20 de dezembro – que escolherão o futuro primeiro-ministro – como a agremiação capaz de assumir o governo.
PROGRAMA
Mas quais os planos do Podemos para a Espanha?
Uma busca em sua página na internet é pouco esclarecedora. Há boas intenções e propostas vagas.
Seguem alguns trechos de seu programa para as eleições de maio:
“Podemos nasce para converter o desalento em mudança política e para construir democracia através da participação cidadã e da unidade popular. Podemos é uma iniciativa cidadã e propõe mudanças simples, porém profundas: recuperar a democracia e colocar a política a serviço das pessoas e dos direitos humanos”.
Mais adiante, alerta:
“Nosso programa foi pensado e redigido por milhares de pessoas e está cheio de propostas ao mesmo tempo ambiciosas e de senso comum. Vejam adiante algumas delas:
1. Mais democracia. Os governantes devem servir ao povo e não servir-se deste. Necessitamos de um plano geral anticorrupção que ponha fim às portas giratórias entre cargos públicos e empresas privadas (...)
2. Mais direitos. Precisamos recuperar a soberania que nos roubaram, para restabelecer os direitos cidadãos. Queremos uma Europa de trabalho digno, saúde universal, com educação, moradia, aposentadorias, ajuda aos dependentes e respeito ao meio ambiente.
3. Mais economia a serviço das pessoas. Transformemos o sistema financeiro. Criemos um modelo socioprodutivo para os países do Mediterrâneo baseado na economia real. Economia do conhecimento, da indústria e da agricultura avançada, com pesquisa, desenvolvimento e inovação em energias renováveis.
4. Os parlamentares do Podemos manterão absoluta independência diante das corporações econômicas e financeiras”.
Como um conjunto de boas intenções, é um ideário ótimo. Como programa concreto de disputa do poder, é ainda insuficiente.
No entanto, a entrada do Podemos como contestação à dramática conjuntura espanhola é uma lufada de ar fresco em um continente que pende para a direita e para o conservadorismo. Não é fácil construir alternativas nessa situação.
Pode também ser um importante elemento na contestação à ortodoxia econômica em território europeu, diante da qual a Grécia segue como voz solitária.
Gilberto Maringoni é professor no Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC
PARA O DEBATE: Universidades e Relações Internacionais
Universidades e Relações Internacionais
Por Gilberto Rodrigues
“Conhecimento é poder”. Num mundo em que a ciência e a tecnologia se impõem como vetores privilegiados do desenvolvimento, essa frase ganha mais força e atualidade. Centros de produção e de aprendizagem de conhecimento, as universidades assumem protagonismo na estratégia dos países em manter ou ampliar seu lugar ao sol nas relações internacionais.
A internacionalização das universidades tornou-se forte indicador de sua capacidade de renovação, de inovação e de atração de talentos – seja de pesquisadores e docentes, seja de alunos. Quanto maior o índice de internacionalização – medido pela mobilidade estudantil, pelas pesquisas inter-universitárias, pela oferta de cursos em outros idiomas, por políticas de atração de estrangeiros, por ações de extensão em outros países (sobretudo em desenvolvimento) entre outros fatores – mais as universidades se tornam entes de projeção internacional de seus Estados.
Como projeção de poder (soft power), o poder do conhecimento, as universidades tornaram-se parte da política externa dos Estados desenvolvidos e em desenvolvimento. Nesse campo, os rankings universitários internacionais são poderosos instrumentos não apenas de reconhecimento das melhores universidades – em geral as mais internacionalizadas – como de consolidação da própria imagem de superioridade dos países que as abrigam.
Não à toa, as melhores universidades, de acordo com os rankings feitos no Norte Global (sobretudo EUA e Reino Unido) são dos países em que os rankings são produzidos. Também não à toa, a China, que hoje se projeta como novo polo de poder internacional, investe muito na educação e na pesquisa, por meio de suas universidades. Igualmente investe para ter e afirmar seus próprios rankings universitários internacionais, em que as universidades chinesas tem seu espaço garantido. Até mesmo a Turquia, país emergente com menos tradição universitária, criou um ranking desse tipo.
Passíveis de críticas na perspectiva educacional, os rankings internacionais são instrumentos cada vez mais relevantes na política internacional. E quanto mais os países em desenvolvimento investirem neles, tanto mais aumentarão suas chances de inserção internacional nesse campo. Então: por que o Brasil ainda não tem o seu?
Gilberto M. A. Rodrigues é professor no Curso de Relações Internacionais da UFABC.
PARA O DEBATE: Sharpeville´s de ontem e hoje
Sharpeville´s de ontem e hoje
Por Muryatan Santana Barbosa
No último dia 21 de março tivemos mais um Dia Internacional contra a Discriminação Racial. Talvez poucos tenham tido notícia porque em geral costumou-se “celebrar” o 20 de novembro, como o dia da Consciência Negra. Mas trata-se de uma data importante. Ela foi instituída em 1969 pela Organização das Nações Unidas, tendo por referência o “Massacre de Sharpeville”, na África do Sul, ocorrido em 21 de março de 1960.
O “Massacre de Sharpeville” foi o assassinato de dezenas (os dados oficiais falam de sessenta e nove mortos e cento e oitenta feridos) de manifestantes anti-apartheid pela polícia sul-africana, em uma manifestação ocorrida na cidade de mesmo nome, próxima a Johannesburg.
A manifestação tinha sido organizada pelo Congresso Pan-Africano, um partido que havia sido recém-formado (1959) na África do Sul, após uma dissidência no Congresso Nacional Africano. O ato era uma afronta ao apartheid. Em particular, contra a “Lei do Passe”, pela qual os sul-africanos negros eram obrigados a portar uma caderneta em que se registrava sua circulação diária. Em suma, era um ato pacífico, de desobediência civil. Algo muito comum nos movimentos políticos negro-africanos à época, inspirados pelas táticas pacifistas de Gandhi, que foram importantes para a independência indiana (1947).
Dada a cobertura internacional que foi dada ao fato, o “Massacre de Sharpeville” acabou virando-se contra o próprio regime sul-africano. A realidade do apartheid tornou-se mais conhecida mundialmente. Pegou mal. Surgiram protestos e críticas. Era claro que eles tinham exagerado. E foi isso que o governo sul-africano ouviu de seus amigos, estadunidenses e israelenses, que também estavam à época buscando formas de modernizar seus colonialismos internos. Não se podia mais administrar povos não europeus apenas pela força da Lei, via segregacionismo aberto. Era muito ostensivo. Fazia-se preciso formular algo mais sofisticado, que foi sendo construído a posteriori.
O mundo de hoje dá razão a isso. No Brasil ocorre uma “Sharpeville” por dia. São cerca de cinquenta jovens negros mortos por homicídio diariamente, sem que isto, aparentemente, nada tenha a ver com a “raça” destes indivíduos. Entre 2002 e 2012, caiu em 33% o número de homicídios de jovens brancos, ao passo que cresceu em 23% o número de homicídios de jovens negros. Estes já são hoje 75% do total dos homicídios de jovens no país. Seria isto apenas uma consequência da desigualdade “social”, da pobreza, da falta de oportunidades? É óbvio que não. A raça foi aparentemente substituída pela vitimização, como forma de controle social. Aí está, talvez, a grande contribuição brasileira à “civilização universal”, uma ideia tão cara a Gilberto Freyre e seus correligionários.
Muryatan Santana Barbosa é Professor do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.
PARA O DEBATE: Ciberpolítica e relações internacionais
Ciberpolítica e relações internacionais
Por Maria Caramez Carlotto
A emergência das novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs) produziram um impacto profundo no plano das relações internacionais. De modo geral, quando se fala de tecnologias no cenário atual, a ênfase quase sempre recai sobre o plano econômico e os impactos desses novos dispositivos sobre a produção e a distribuição de bens e serviços. No entanto, existe outro âmbito em que o uso da TICs torna-se cada vez mais importante: o plano político, que inclui tanto a relação entre Estados Nacionais quanto a relação dos cidadãos entre si e desses com seus respectivos Estados.
Nesse sentido, Philip Howard, no seu livro The Digital Origins of Dictatorship and Democracy: Information Technology and Political Islam, analisa o uso das TICs nos países islâmicos mostrando como essas novas tecnologias tiveram um papel decisivo no surgimento de movimentos de democratização em diferentes países, ao mesmo tempo em que contribuíram para aumentar o processo de vigilância e repressão em outros. Procurando romper com uma visão ontológico-determinista da tecnologia, segundo a qual as TICs seriam intrinsecamente boas ou ruins, o autor procura enfatizar, através de muitos exemplos, que as novas TICs se abrem para usos diversos, tais como a organização e o registro descentralizado de protestos contra o governo, a difusão de informações falsas e boatos sistemáticos, a censura virtual e a vigilância e localização de militantes de oposição. Mas mesmo reconhecendo que as TICs permanecem abertas a usos distintos, o autor insiste que elas, assim como outras formas de tecnologia, não podem ser consideradas “neutras”. Na verdade, Howard insiste que as tecnologias encerram valores e pressupostos que se relacionam diretamente aos objetivos para os quais foram criadas , favorecendo determinados usos e inibindo outros.
No caso específico das novas TICs, Philip Howard destaca que os custos decrescentes de acesso a essas tecnologias e a sua rápida disseminação, em particular nos países islâmicos, favorecem um uso individual e descentralizado que, segundo o autor, atinge o âmago da cultura política predominante em alguns desses países, centrada no controle verticalizado de hábitos e visões de mundo. Assim, embora reconheça que alguns Estados encontraram nas TICs e na internet novos canais de controle social dos seus cidadãos, incluindo formas ativas de vigilância, o fato é que Howard acaba assumindo uma perspectiva essencialmente otimista em relação às TICs e à internet ao enfatizar o seu papel na organização de movimentos democráticos nos países islâmicos.
Considerando especificamente o caso da internet, esse otimismo se justifica, em parte, quando olhamos para a sua história. A internet foi criada, como se sabe, nos Estados Unidos, como parte de um projeto de pesquisa militar durante os anos 1950. Na época, a famosa Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (ARPA) do Departamento de Defesa norte-americano procurava desenvolver um sistema de comunicação que, sem qualquer forma centralizada de controle, se tornasse relativamente imune a ataques nucleares com alvo direcionado. O caráter descentralizado da rede foi potencializado, mais tarde, pelo surgimento de uma tecnologia de empacotamento de dados que permitia o compartilhamento de qualquer conteúdo e formato entre dois ou mais computadores conectados em rede, tornando os centros de difusão ainda mais supérfluos.
Segundo a reconstrução histórica proposta por Manuel Castells, a primeira rede de computadores começou a funcionar em 1969 com o nome de ARPANET, conectando entre si centros de pesquisa militares e grandes universidades norte-americanas. A ARPANET permitiu inserir, em uma pesquisa inicialmente militar, interesses e objetivos de natureza acadêmico-científica. Mais do que isso, dado que o ambiente acadêmico de pesquisa em computação e ciência da informação nos anos 1960 e 1970 vivia sob uma forte influência da contracultura libertária, o desenvolvimento da internet também foi impactado por esse conjunto de valores que, como bem observa Sérgio Amadeu da Silveira no seu texto Ciberativismo, cultura hacker e o individualismo colaborativo, favorece os ideais de emancipação, compartilhamento de informação, meritocracia e liberdade individual que está na origem da cultura hacker. Assim, enquanto um sistema técnico que, na sua origem, buscava prescindir de centros de controle e ao qual se somou uma comunidade de desenvolvedores que compartilhava uma cultura libertária, era esperado que a internet potencializasse usos sociais e políticos voltados à autonomia, ao ativismo individual e coletivo e à contestação social.
Mas a história da internet não se resume a essa origem militar, acadêmica e cultural. No começo dos anos 1990, o governo dos Estados Unidos transferiu a gestão da internet para organizações comerciais, o que contribuiu para acelerar a sua expansão mas, ao mesmo tempo, abriu a rede para interesses do setor empresarial. Essa abertura da internet a interesses comerciais teve impactos na arquitetura das redes e na sua dinâmica de funcionamento, em particular em países que não aprovaram legislações e marcos regulatórios que procuram preservar o formato e a arquitetura original das redes.
Além disso, a abertura da internet para exploração comercial foi mais ou menos concomitante à decisão do governo Clinton de abrir o sinal do Global Positional System (GPS), outra tecnologia de origem militar, para uso comercial e privado. O GPS, em síntese, mobiliza a radiofusão de satélites orbitais para localizar dispositivos emissores de sinal em qualquer local do planeta. Assim, se a rede mundial de computadores permite a conexão de pessoas e dispositivos em qualquer lugar do mundo, promovendo uma desterritorialização por meio de relações virtuais, a geolocalização via GPS permite identificar, com precisão, a posição de qualquer pessoa e dispositivos, promovendo uma reterritorialização dos indivíduos.
Foi justamente a união entre essas duas tecnologias que potencializou formas mais intensas de controle e vigilância na rede, em especial via rastreamento e cruzamento de dados pessoais. Assim, as formas de vigilância digital, hoje, voltam-se cada vez mais para a identificação de perfis individuais pelo rastreamento de informações na rede, padrões de movimentação geográfica e padrões de associação, engajamento e consumo. Essa vigilância pode se dar tanto por meio de empresas privadas, como a “Project Vigilant”, quanto através de agências governamentais, das quais a mais famosa é a norte-americana NSA (National Security Agency).
A empresa norte-americana “Project Vigilant”, cujo lema é justamente “atribuir ações a atores”, ganhou notoriedade internacional ao contribuir para a identificação do soldado norte-americano Bradley Manning como o responsável pelo vazamento de material sigiloso sobre a atuação do exército norte-americano na guerra do Iraque através da plataforma Wikileaks. Já naquela época, começo de 2011, havia indícios de que o governo norte-americano estaria promovendo iniciativas de vigilância em massa,
através da contratação de serviços terceirizados dessas empresas privadas. Em meados de 2013, no entanto, as informações fornecidas pelo analista de sistemas, Edward Snowden, tornaram público que os Estados Unidos mantinham um amplo programa de vigilância, com sede na NSA, envolvendo a captação de dados, e-mails, ligações telefônicas, movimentação de cartão de crédito e qualquer tipo de comunicação entre cidadãos, empresas e governos em âmbito nacional e internacional, através da colaboração ativa de grandes empresas do setor. Como se tornou público depois, o Brasil era um dos principais alvos do esquema de vigilância divulgado por Snowden, o que lançou o país de modo definitivo na discussão sobre segurança, privacidade e conflitos cibernéticos.
As revelações de Snowden – cuja história é retrata de forma brilhante no filme de Laura Poitras, Citzen four, vencedor do Oscar de melhor documentário em 2015 – lançam uma luz inquietante sobre a atuação dos Estados Unidos na vigilância individual dentro e fora do seu país. Nesse esquema, as grandes empresas norte-americanas de internet e tecnologia como a Google, a Apple, o Yahoo e o Facebook contribuem de forma ativa, fornecendo dados de seus clientes e usuários. Resta saber, agora, qual é a participação do governo e das empresas norte-americanas não só nas redes de vigilância digital mas, também, na ciberpolítica de forma mais ampla, em especial nas formas mais modernas de militância na rede como as que Philip Howard analisa em países islâmicos e como as que, desde a eleição presidencial de 2014, estamos vendo atuar no Brasil, com efeitos importantes sobre o atual governo em âmbito federal.
Maria Caramez Carlotto é Professora do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.